domingo, 15 de fevereiro de 2009

Arquivo X - A verdade verdadeira


"Uma escolha esquisita, mas o roteiro pode fazer funcionar." Foi com estas palavras pouco auspiciosas que um jornal descreveu a nova atração da Fox para a temporada 1993-1994. Em Vancouver, onde o piloto foi filmado, o gerente de produção J.P. Finn explicou a Todd Pittson, encarregado de locações, que o novo programa tinha "algo a ver com agentes do FBI investigando casos não resolvidos". Sua previsão era de que a equipe teria emprego talvez até o Natal.
A seleção de desconhecidos na produção também não incentivava o otimismo. O criador da série, Chris Carter, era um ex-repórter especializado em surf. Gillian Anderson era uma atriz desconhecida, com um pequeno currículo de trabalhos em teatro. David Duchovny era o mais famoso da linha de frente. Em sua filmografia estavam Kalifórnia e Twin Peaks. A série cult de
David Lynch era uma estrela dourada no currículo de qualquer ator, mas estava longe de ser um prato para paladares comuns. Para completar, Duchovny havia interpretado o estranho agente Dennis, que trabalhava vestido de mulher.
Impulsionada pelo sucesso de O Silêncio dos Inocentes e com As Aventuras de Brisco County Jr. como sua aposta mais forte na temporada de outono de 1993, a Fox tinha aprovado Arquivo X sem esperar muito, e acabou tendo nas mãos um dos maiores sucessos da TV de todos os tempos.
A criação
A inspiração inicial para Arquivo X, segundo o próprio Chris Carter, foi a série Kolchak e os Demônios da Noite. Produzida nos anos 70 pela rede ABC, a série acompanhava o trabalho de Carl Kolchak, repórter do Independent News Service que lutava contra um assassino misterioso a cada semana e terminava o dia invariavelmente sem provas do que havia acontecido. Estrelada por Darren McGavin, a série nasceu de dois longas para TV, The Night Stalker (1972) e The Night Strangler (1973). Os adversários de Kolchak, uma seleção composta por vampiro, lobisomem, monstro do pântano e Jack, o Estripador, eram uma pista do que Arquivo X mostraria ao público. Kolchak e sua luta inglória contra as autoridades e os descrentes, entre eles seu chefe Tony Vincenzo, seria o molde sobre o qual Carter criaria seu personagem principal, Fox Mulder.
A partir dessa inspiração inicial, Carter construiu uma mistura de gêneros que mesclava ficção científica, terror e policial em doses que desafiavam o limite da credibilidade. O resultado foi um programa que lembrava séries como O Livro Azul e Projeto UFO, nas quais agentes da aeronáutica investigavam OVNIS e visitas alienígenas, os momentos sobrenaturais de Além da Imaginação, a luta do homem que sabe demais de Os Invasores, acompanhado da dinâmica tradicional de uma dupla de policiais que parecem opostos, mas, na verdade, são complementares.
Uma das criações mais bem sucedidas de Carter foi o que a produção chamava de "a mitologia" da série. O primeiro elemento dela era a existência de um departamento no FBI em que seriam investigadas coisas fora do normal. A mitologia diz que, em 1946, o poderoso J. Edgar Hoover classificou o primeiro caso como um arquivo X, e determinou que todos os assuntos não investigados por outros departamentos seriam da alçada da nova área. Ao longo dos anos, o arquivo X tornou-se a curva de rio do Bureau, para onde iam histórias de fantasmas, avistamentos do Pé Grande e outros monstros em geral, e tudo relacionado a OVNIS e à presença de alienígenas na Terra.
O segundo elemento da mitologia é Fox Mulder. Psicólogo, com formação em Oxford, Mulder assombrou os instrutores da academia do FBI com sua capacidade para construir o perfil de criminosos e por seus instintos durante o trabalho de investigação. Sua performance o classificava como um agente com um grande futuro no Bureau. Esse futuro morre no momento em que Mulder e o arquivo X convergem: o agente convence seus superiores a reabrir o departamento.
O que atrai Mulder à coleção de pastas no porão é o desaparecimento de sua irmã, Samantha, na noite de 27 de novembro de 1973. Encarregado de cuidar da irmã durante a ausência dos pais, Mulder é um caso clássico de culpa de sobrevivente. Sem preconceitos contra métodos não tradicionais, ou provavelmente atraído até eles justamente por não serem aceitos pelo establishment, Mulder recorre à regressão hipnótica para lembrar o que aconteceu aquela noite. É desta forma que ele descobre que Samantha foi abduzida. A busca pela irmã é o que faz de Mulder o cavaleiro do Arquivo X, e Samantha o santo graal da mitologia criada por Carter, que estabelece que sua abdução é parte de uma grande conspiração envolvendo o governo e experiências com DNA alienígena em humanos.
A estrutura da série foi montada a partir daí em dois grupos de episódios, as histórias isoladas em que os vilões são monstros “comuns”, e os episódios que prosseguiam com o enredo da mitologia da série. Alimentando o interesse do público, os roteiros inseriam uma seleção de referências a diversas teorias conspiratórias que já habitavam a consciência popular. O informante de Mulder, Garganta Profunda, remete ao homem que revelou aos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein que o governo estava envolvido nas escutas telefônicas dos escritórios do partido Democrata no que se tornaria o caso Watergate. O nome do trio de ajudantes de Mulder, os Pistoleiros Solitários, saiu da mãe de todas as teorias de conspiração estadunidenses, aquela que cerca a morte do presidente John Kennedy. Pistoleiro solitário é o apelido da conclusão da comissão que investigou o crime de que o presidente foi morto por um único homem. A revista publicada pelo trio, Magic Bullet (Bala Mágica), também nasceu da crença de boa parte da população local de que Lee Oswald só conseguiria cometer o crime como descrito pela investigação governamental se usasse uma bala com poderes mágicos. Outras referências são mais caseiras, como o uso constante dos horários 11:21 e 10:13, uma homenagem de Carter ao aniversário de sua esposa, 21 de novembro, e ao seu, 13 de outubro.
A série
A ação de Arquivo X começa em 6 de março de 1992, quando a agente Dana Scully se encontra com Mulder pela primeira vez. Enquanto Scully recebe suas ordens para supervisionar Mulder numa reunião com a chefia, um homem observa silenciosamente ao fundo. Mais tarde, o público vai reconhecer o observador como um dos vilões da série, o Canceroso. A cena também estabelece que aqueles que comandam a conspiração estão no controle desde o início, a ponto de orquestrarem o encontro de Mulder e Scully.
A escalação de Gillian Anderson foi um golpe de sorte e um ato de enorme instinto de Carter. Inicialmente indesejada pela rede, que queria uma loira alta e mais sexy para o papel, Anderson foi também considerada muito jovem. Embora sem nenhum grande sucesso passado no bolso, Carter conhecia o jogo o suficiente para mentir quanto à idade de Anderson e garantir sua escalação. Scully seria o elemento final da mitologia da série. É quando Mulder explica à nova colega a existência do Arquivo X que aprendemos sobre o estranho departamento do FBI. O mesmo método nos apresenta ao rapto de Samantha. Scully é a guia do público para o universo da série e a voz de Carter, que muitas vezes declarou escrever a partir do olhar da agente.
Desde o piloto, Carter e seus roteiristas estabeleceram também uma inesperada inversão de papéis, com um homem mais emocional e uma mulher mais racional. Arquivo X também foi bem sucedido em construir uma personagem feminina forte, mas não masculinizada. Ao longo da série Scully seria definida como um novo objeto de adoração, o símbolo sexual que pensa.
Outro golpe de sorte para a produção foi a química entre David Duchovny e Gillian Anderson. Segundo Carter, Mulder e Scully são duas partes dele mesmo, a que quer acreditar e a que acha impossível acreditar. O relacionamento entre os dois tornou-se tão interessante para o público quanto a busca pela verdade sobre Samantha. Ciente do valor da tensão sexual, Carter levou a distância entre os dois ao extremo, a ponto da dupla poucas vezes ter usado o primeiro nome um do outro.
Durante os vários anos da série a dicotomia entre os dois, o crédulo e a cética, seria desafiada, mas o romance feito de fiapos de evidências jamais falhou em manter a atenção do público. Brincando com a própria decisão de manter os personagens separados, Mulder e Scully trocaram um beijo no réveillon de 1999 terminando com um sarcástico "o mundo não acabou" do agente para a amiga. O relacionamento da dupla mudaria apenas no final da série, para desagrado de uma parte do público e da crítica e aplausos daqueles que torciam pelo romance. A série, entretanto, jamais mostrou beijos apaixonados ou qualquer outra cena mais quente entre os dois.
Sucesso
A primeira impressão de Arquivo X era de um Twin Peaks mal humorado. O final da primeira temporada colocou a série em 102o lugar numa lista de 118 programas e os números não eram ruins, mas não eram estelares. A série havia estabelecido com sucesso a dinâmica entre seus personagens, a busca de Mulder, um universo em que o FBI investigava mutantes e mulheres fera, e a atmosfera geral de desconfiança contra aqueles que estão no comando do país e das corporações típica do Arquivo X.
Carter sempre deu crédito ao boca-a-boca como primeiro motor do sucesso de Arquivo X. Estacionada nas noites de sexta, a série procurava justamente o público que não estava lá, adultos que costumam sair para se divertir naquele horário. No Reino Unido a estréia também foi praticamente ignorada e severamente criticada por alguns que mais tarde se retratariam. Embora ainda não fosse um sucesso estrondoso, a primeira temporada deu à série um público fiel, e é considerada uma das pioneiras da Internet. Em 1994 a rede já tinha um newsgroup dedicado ao programa, alt.tv.x-files, e, no mesmo ano, um grupo de discussão criado por um fã na rede Delphi foi transformado no site oficial da série.
As notícias de que Gillian Anderson estava grávida e seu personagem seria engravidado por um alienígena, além de um Globo de Ouro de melhor série, ajudou a acelerar os números para o segundo ano. A gravidez da atriz, que pode ou não ter colocado seu emprego em risco, dependendo de quem concedia a entrevista na época, acabou inspirando um grupo de episódios que se transformou num dos elementos essenciais da mitologia da série. Começando com "Homenzinhos Verdes" ("Little Green Men"), Scully e Mulder são separados. Ela volta a ensinar em Quântico, e ele é escalado para acompanhar escutas telefônicas. O enredo continua em mais sete episódios da segunda temporada em que a agente é raptada e retorna misteriosamente em "Por Um Fio", interpretando uma cena ainda no hospital após dar à luz.
O sucesso a partir daí passou a crescer inexoravelmente. Frases da série, como "Eu Quero Acreditar", "Não Confie em Ninguém" ou "A Verdade Está Lá Fora", passaram a fazer parte do vocabulário das ruas e mais de um colega de escritório descobriu a senha do vizinho de mesa digitando "trustno1". O sucesso como série cult prosseguiu até o quarto ano, quando números ainda mais estrondosos transformaram o patinho feio da temporada de 93 na série preferida dos anunciantes.
A quinta temporada foi marcada pelo nascimento da primeira série derivada de Arquivo X, Millenium, e pela decisão de levar a série para o cinema antes do prazo normal em Hollywood. Ao invés de aguardar o final da série, o longa-metragem foi produzido como uma ponte entre a quinta e a sexta temporada, o que restringiu as possibilidades do roteiro tanto do filme quanto da série.
Ao atingir o sucesso, Arquivo X deu início a uma nova missão, aquela de saber o que fez a série chegar onde chegou. Certamente há o roteiro, a mitologia e a química entre os atores. Mas há também o momento. Ainda longe da paranóia terrorista pós-2001, a série captou a sensação do público de que o mundo não era um lugar seguro. Segundo Chris Carter, o bem vence muito poucas vezes e nós é que vivemos em negação quanto a este fato.
Segundo o diretor do primeiro filme da série, Rob Bowman, Mulder representa o homem atual em busca do sonho americano, que hoje significa descobrir a verdade. Em sua opinião, o público se identificava com a angústia de Mulder em descobrir que as pessoas no governo escondiam fatos e não agiam de acordo com o interesse dos eleitores, fato que não é segredo na América Latina, mas espanta os estadunidenses. A série também compreendia que o mal não era único. Uma vez vencido em uma de suas formas, seja um monstro como Tooms ("Assassino Imortal") ou um criminoso comum como Donnie Pfaster ("Irresistível"), seja como um plano governamental, o mal volta sob nova forma. É sua dedicação em continuar a lutar que fez de Mulder e Scully personagens que o público queria acompanhar.
Censura
Com sua mistura de policial, ficção científica e terror, era claro que Arquivo X teria seus problemas com uma parte do público e, principalmente, com uma parte dos canais exibidores. No Reino Unido a Sky One ganhou notoriedade ao passar a tesoura em "Os Adoradores das Trevas" ("Die Hand die Verletz"). O episódio é uma história isolada em que Mulder e Scully investigam um caso de culto ao demônio em uma escola. Ao todo, o episódio em que Mulder diz uma de suas grandes frases, "você não pode chamar o demônio e depois pedir para ele se comportar", perdeu mais de dois minutos de duração. Outros episódios vítima dos olhos sensíveis da Sky One foram "Ossos Frescos" ("Fresh Bones") e "Sangue" ("Blood"). O motivo era tão "nobre" quanto a ação inútil. As cenas cortadas eram as mais gráficas e aquelas que envolviam armas brancas; mais tarde, quando a série mudou de canal, os episódios foram exibidos sem cortes.
A luta contra a censura, na verdade, começava na produção, quando Carter tinha de defender as cenas mais sangrentas ou nojentas para o pessoal da equipe de Standards and Practices do estúdio. Uma vez aprovados pela Fox, no entanto, o público esperava poder assistir à sua série em paz. Uma solução para o problema no Reino Unido foi dada pelo próprio público: exibir a série mais tarde.
Fim
Para muitos, o fim de Arquivo X chegou no momento em que a série se mudou para Los Angeles na sexta temporada. Produzida em Vancouver, Arquivo X é apenas um dos programas que aproveitou diversas vantagens oferecidas pelo país vizinho. Além de um câmbio favorável, o Canadá oferece incentivos fiscais para atrair produções, entre elas a devolução de parte do valor pago a profissionais canadenses. Geograficamente, Vancouver oferece a facilidade de vários cenários a poucos quilômetros de distância, incluindo áreas com neve, um bondinho, instalações portuárias e bairros que podem interpretar "qualquer lugar nos Estados Unidos" com facilidade. O que Vancouver não tem são dias ensolarados como os da Califórnia. A atmosfera cinzenta acabou sendo incorporada à série, e foi destruída quando Mulder e Scully aterrissaram em Los Angeles.
As mudanças em Arquivo X aconteceram principalmente a pedido de David Duchovny, agora casado com Tea Leoni, embora Chris Carter tenha tentado convencer o público de que o objetivo sempre tinha sido filmar em Los Angeles. Uma parcela dos fãs, descontente com a alteração no tom do programa, se afastou, gerando uma queda de audiência, mas a série ainda era o maior sucesso da Fox. Um sucesso do qual o estúdio não queria se separar. Arquivo X prosseguiu ainda por mais duas temporadas, marcadas pelo afastamento de Duchovny, que iniciou um processo contra a Fox por questões financeiras.
A produção tentou introduzir o conceito de que os personagens poderiam mudar, mas a mitologia manteria o seriado funcionando. Dois novos agentes foram introduzidos no Arquivo X, John Doggett (Robert Patrick) e Mônica Reyes (Annabeth Gish), com Mulder e Scully aparecendo ocasionalmente. A idéia de outras pessoas no Arquivo X, entretanto, jamais foi aceita completamente pelos fãs e o seriado acabou encerrando sua vida na telinha na nona temporada com "A Verdade". E com Mulder e Scully juntos no último episódio.

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